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Veneza se confunde com a Palestina e Alexander Payne consigo mesmo

Veneza se confunde com a Palestina e Alexander Payne consigo mesmo

A esta altura, a notícia não é sobre quem ganhou o Leão de Ouro em Veneza, mas sobre quem não ganhou. Nunca antes o presidente do júri de um festival de cinema passou tanto tempo raciocinando não tanto sobre a decisão do seu painel, mas sobre a decisão em si; isto é, o que a esta altura parece um erro flagrante na atribuição de um prémio. Primeiro, foi a realizadora Kaouther Ben Hania que mal conseguiu conter a sua perplexidade, se não a raiva, no palco. O Grande Prémio do Júri mal a fez sorrir, apesar dos abraços (que pareciam mais consoladores do que felicitadores) que lhe foram dados pela pessoa encarregada de lhe entregar o troféu, a cineasta e colega de júri Maura Delpero. Na verdade, também não se deve pensar o pior; é compreensível que seja difícil sorrir se o enredo do seu filme, The Voice of Hind, for genocídio, e mais especificamente, o assassinato de uma menina de seis anos após horas de agonia na companhia dos cadáveres dos seus tios e sobrinhos. Foi o que aconteceu com Hind Rajab quando ela morreu após ser baleada 355 vezes pelo exército de ocupação israelense em 29 de janeiro de 2024. Mas a verdade é que a alegria, se existiu, era interna.

Pouco depois de receber a estatueta do Leão de Ouro alado, o diretor Jim Jarmusch dedicou sua coletiva de imprensa a falar não tanto sobre seu filme, sua alegria ou o bom tempo em Veneza, mas, na verdade, sobre o filme rival. Ele deixou claro que a destruição de Gaza "é financiada por pessoas nos EUA que lucram com a guerra". O comentário foi obrigatório após saber que a Mubi, produtora do recente sucesso de bilheteria Pai, Mãe, Irmã, Irmão, havia anunciado um investimento de US$ 100 milhões na Sequoia, uma empresa de capital de risco ligada à tecnologia de defesa israelense. Mas há mais. Sempre há mais. Até que ponto o fato de o agente e descobridor de Payne ter sido David Lonner, magnata de Hollywood e defensor ferrenho da política atual de Israel, influenciou a decisão? A especulação é livre.

Logo após a cerimônia, falando à imprensa, Alexander Payne se esforçou para parecer calmo. "O lado injusto de estar em um festival é ter que dizer que isto é melhor do que aquilo. Não é", disse ele. E continuou: "Como júri, valorizamos ambos os filmes igualmente, cada um por sua própria razão. Desejamos a ambos uma vida longa e importante, e esperamos que o apoio dos prêmios que concedemos esta noite os beneficie, cada um à sua maneira." Dito isso, apressou-se a desmentir veementemente o boato de que um dos jurados havia ameaçado renunciar: "Não prestem atenção ao que leem na internet", disse ele de forma concisa, elegante e, visivelmente, impressionado.

Os defensores de Payne argumentam que o prêmio não é tanto pelo filme de Jarmusch, que também é importante, mas sim por sua carreira impecável. Mas em sua própria defesa está a penitência. Se se trata de avaliar questões que vão além do filme em si, como podemos ignorar os 22 minutos de aplausos ininterruptos na apresentação do filme palestino? Como podemos fechar os olhos para o genocídio? E, finalmente: não é indecente (nem, aliás, imoral) que o vencedor financie (financie, não importa quanta justificativa seja embelezada) o próprio genocídio denunciado pelo perdedor. Estas não serão noites tranquilas para Payne.

E mais uma de graça. Os jurados eram as atrizes Fernanda Torres e Zhao Tao, e os diretores Cristian Mungiu, Mohammad Rasoulof e Stéphane Brizé, além da já citada Maura Delpero. Ou seja, é difícil imaginar um júri, no papel, mais qualificado e com um cinema mais comprometido. Rasoulof ( A Semente da Figueira Sagrada ), vale lembrar, vive exilado na França após fugir do Irã, e Brizé tem uma filmografia inteira dedicada a estripar essa coisa chamada capitalismo com filmes como A Lei do Mercado e Em Guerra . Em ambos os casos, para citar apenas o óbvio (algo semelhante poderia ser dito de Mungiu ou Delpero), trata-se de filmografias essencialmente políticas. É imaginável que se posicionem contra Ben Hania? Resposta: não, não é.

Seja como for, o que está claro é que a 82ª edição da Mostra será lembrada pelo ano em que A Voz de Hind não conquistou o Leão de Ouro. A segunda lembrança ficará para o presidente do júri que tornou tal lembrança possível: Alexander Payne.

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