Sem chão no Afeganistão

Quando os talibãs assinaram o Acordo de Doha com a administração Trump, em 2020, prometeram nunca permitir que o Afeganistão voltasse ao estado fragmentado em que se encontrava no final da década de 90. Após a retirada soviética, em 1989, o mundo declarou missão cumprida e afastou-se, deixando o caminho livre a extremistas armados como os talibãs. Mesmo depois de tomarem o poder, em 1996, o seu domínio era tão frágil que grupos terroristas como a al-Qaeda puderam operar sem entraves. Osama bin Laden não só foi tolerado como acolhido.
Desta vez, garantiam, seria diferente. Mas a promessa soava estranha vinda de um grupo considerado terrorista por muitos países, incluindo Portugal. Além disso, os talibãs não eram uma entidade coesa, mas uma coligação de fações que tinham combatido o governo apoiado pelos EUA. Enquanto se discutia se eram de confiar, ninguém se interrogava se eram sequer capazes de manter a unidade e governar.
A resposta surgiu depressa: dias após o acordo, intensificaram os ataques às forças afegãs. Em vez de promover um processo de paz inclusivo, os talibãs aproveitaram a retirada americana para conquistar o país pela força. A administração Biden prosseguiu a política de abandono, onde a retirada caótica das forças ocidentais expôs o vazio do acordo: não era paz, era a formalização da saída após vinte anos de políticas falhadas, corrupção institucionalizada e incompetência.
Com os EUA fora, os talibãs começaram a quebrar promessas. Negaram direitos às mulheres, proibindo raparigas de estudar para além do sexto ano e praticamente apagando-as da vida pública. Nas ruas, a polícia da moralidade pune mulheres que saem sozinhas ou que se atrevem a rir em público. Em Washington, estas violações não suscitaram mais do que reprimendas ocasionais. O que realmente parecia importar era apenas se o Afeganistão deixaria de ser um refúgio para terroristas.
Hoje, multiplicam-se as provas de corrupção e favoritismo étnico. Um relatório recente do Inspetor-Geral dos EUA acusa os talibãs de desviar milhares de milhões em ajuda internacional, manipular taxas de câmbio, obrigar ONGs a contratar empresas ligadas ao regime e até desviar apoio destinado às diferentes comunidades para escolas religiosas e bases militares.
As divisões internas também se acentuam. A rede Haqqani, dirigida pelo Ministro do Interior de mesmo nome, apresenta-se como pragmática face ao fervor ideológico. Foram os combatentes mais eficazes contra o ocidente, mas são igualmente motivados pelo negócio e pelo lucro. Em público, Haqqani fala em unidade; em privado, critica a rigidez do líder supremo. As tensões transparecem em episódios como as celebrações paralelas do Eid, celebrando o fim do Ramadão, em dois palácios de Cabul – um sinal claro de duplo centro de poder.
Entretanto, deportações em massa do Irão, Paquistão, Turquia e Alemanha agravam a crise. Desde setembro de 2023, mais de quatro milhões de afegãos regressaram, muitos deles jovens que sustentavam as famílias a partir do estrangeiro. Encontram uma economia em colapso e enfrentam represálias: assassinatos extrajudiciais de antigos soldados, ativistas, músicos e jornalistas.
A pobreza e a repressão são terreno fértil para o recrutamento extremista. A ONU já considera o ISKP uma ameaça séria, ao passo que a al-Qaeda, embora discreta, reforça laços com grupos regionais como os talibãs paquistaneses, responsáveis por ataques crescentes desde 2021. Para manter a unidade, os talibãs sentem-se forçados a adotar políticas rígidas que agradem às suas fações mais extremas, mesmo correndo o risco de perder elementos para grupos rivais.
A este cenário junta-se agora o impacto devastador dos recente terramotos que atingiram o país, deixando milhares de mortos e desalojados. A catástrofe natural expôs ainda mais a fragilidade do país: infraestruturas destruídas, hospitais sem capacidade e populações inteiras sem acesso a abrigo ou alimentos. A incapacidade dos talibãs em coordenar ajuda humanitária, agravada pela desconfiança da comunidade internacional e pela corrupção no desvio de fundos, ameaça transformar uma tragédia natural num acelerador da crise social e política já em curso.
Eis o dilema talibã: se cederem às exigências internacionais sobre mulheres e minorias, arriscam perder membros para rivais extremistas; se forem inflexíveis, fortalecem ainda mais esses grupos. Em ambos os casos, o extremismo sai vencedor.
Assim, é provável que quebrem a última promessa feita ao Ocidente: impedir que o Afeganistão volte a ser um santuário terrorista. Na verdade, nunca tiveram intenção de cumprir o Acordo de Doha, já que em fevereiro anunciaram oficialmente que deixariam de o reconhecer.
Resta saber como reagirá a comunidade internacional. Em junho, a embaixadora dos EUA na ONU, Dorothy Shea, admitiu que a política para o Afeganistão está “em revisão”, mas pouco se espera além de medidas antiterrorismo. Em março, Washington retirou discretamente a recompensa por Haqqani e, no dia seguinte, os talibãs desapareceram do relatório anual sobre ameaças à segurança nacional.
Em suma, o Ocidente parece declarar, mais uma vez: missão cumprida. A história pode não se repetir ao detalhe, mas o paralelo é inconfundível.
observador