"Não há nenhuma música pura. O próprio fado tem influências"

© Luis Mileu
No início de junho, a fadista Lina lançou o single 'Arde Sem Se Ver', que faz parte do novo álbum, 'Terra Mãe'. Agora, o mês termina com mais novidades. A cantora acaba de dar a conhecer este novo projeto, editado esta sexta-feira, dia 27 de junho, pela Atlantic Curve - Schubert Music Europe.
O álbum vai ser apresentado na FNAC do Chiado, às 18h30, no dia 27 de junho, na FNAC do Colombo, às 17h, no dia 28, e na FNAC do Norte Shopping, às 17h, no dia 29.
O disco conta com nove faixas: 'Arde Sem Se Ver'; 'Não Deixei de Ser Quem Sou'; 'Terra Mãe'; 'Entre o Ser e o Estar'; 'Milagres'; 'Réquiem'; 'A Flor da Romã'; 'Falcão na Corda Bamba'; 'When are they coming'. Um trabalho feito em colaboração com o compositor irlandês Jules Maxwell (compositor e teclista dos Dead Can Dance), e que sucede o álbum 'Burn', de Lisa Gerrard e Jules Maxwell, editado em 2021.
Não é fama que Lina procura, como realçou em conversa com o Notícias ao Minuto, mas sim reconhecimento. E, diz, "lá fora é muito bem recebida", conseguindo agendar vários espetáculos, como pode ver abaixo, sendo que em Portugal já começa também a fazer algum caminho nesse sentido. "Não é uma coisa nova. Infelizmente, os artistas são reconhecidos lá fora e só depois é que são reconhecidos aqui, isso acontece muito", desabafou.
A união dos artistas foi outro dos pontos destacados, não deixando de trazer para cima da mesa a "importância de se fazer ligações" entre músicos.
"Era muito interessante fazermos uma espécie de residências artísticas onde pudéssemos criar. Era espetacular, era uma coisa que gostava imenso de fazer, até com outros fadistas, com outros músicos. Criar algo de raiz, música de raiz, que pudéssemos todos partilhar ideias e conhecimentos. Seria ótimo! Temos de ser um bocadinho mais unidos nesse sentido, faz falta."
E este novo disco é precisamente uma colaboração com um outro artista. Apesar da distância que os separa, não deixaram de conseguir concretizar este projeto em conjunto.
Durante a entrevista, referindo-se ao novo disco, destacou-se o tema de abertura 'Arde Sem Se Ver', cuja letra é uma adaptação da compositora Amélia Muge do poema 'Amor é fogo que arde sem se ver', de Luís Vaz de Camões. De referir que, no ano passado, Lina deu a conhecer o 'Fado de Camões', disco dedicado à lírica de Luís de Camões.
LINA_ & Jules Maxwell© Lizzi Kew Ross
Como surgiu a ideia que levou à canção 'Arde Sem Se Ver’?
Esta música chamava-se inicialmente 'Follow the Dove'. Aquilo que procurámos fazer foi traduzir para português - sendo que é bastante difícil fazer uma tradução perfeita do inglês para português. O Jules Maxwell já tinha esta música e letra feitas por ele, mas em português o significado não faria muito sentido para nós. A Amélia Muge lembrou-se de fazer uma adaptação ao poema 'Amor é o Fogo e Arte Sem Se Ver', de Luís de Camões, uma vez que também já vinha do álbum anterior essa vontade. Trabalhei todo um álbum sobre os poemas de Camões e o fado.
Surgiu esta adaptação muito interessante, que acaba por explorar outros espaços no próprio poema, dando-lhe outros significados, outra intensidade, indo aqui buscar o sentimento do bater do coração e quais as emoções que podemos sentir através deste poema - que são um bocadinho mais sequenciadas, um pouco mais fáceis de interpretar. Quando há uma repetição, somos mais sensíveis a essa repetição, a ficarmos mais dependentes da própria frase e dos próprios sentimentos, que surgem através dessa pequena frase que é repetida E é também uma forma de continuar a homenagear este nosso poeta e os seus 500 anos. É a primeira música do álbum e, para mim, fazia todo sentido, pelo facto de ter dedicado um álbum inteiramente ao Camões e ao fado.
Este 'Arde Sem Se Ver' vem depois de ter lançado o tema 'Não Deixei de Ser Quem Sou' em colaboração com Jules Maxwell. Mas já tinham trabalhado antes ou foi uma estreia?
O Jules Maxwell e a Lisa Gerrard fizeram um álbum que se chama 'Burn' e apresentaram-no aqui em Portugal, através da agência UGURU. Tive a oportunidade de ir a esse concerto e, no final, conheci os dois. O 'Terra Mãe' acaba por ser uma sequência daquilo que o Jules tinha feito anteriormente com a Lisa Gerrard. Ele tinha muito interesse na música tradicional portuguesa.
Também é muito influenciado pelo estilo antigo da música irlandesa - são músicas cantadas sem instrumentação nenhuma, à capela, e que faz muito lembrar o fado, principalmente o estado emocional do fado. Daí esse interesse do Jules Maxwell de trabalhar comigo este projeto, de me mostrar as suas músicas e fazer a adaptação para elas - também através de bases que ele me ia enviando, criando novas letras e melodias em cima dessas bases musicais. Foi esse o trabalho que fizemos.
Este 'Terra Mãe' é trabalhado por ambos?
Sim, completamente. Algumas músicas já existiam, outras só existia a base melódica. Por exemplo, 'Terra Mãe' e 'Réquiem' são criações minhas. Ele enviou-me as bases da música e eu criei a melodia e a letra - indo ao encontro da temática que se estava a criar, que era a reflexão sobre o eu. No fundo, acaba por ser um bocadinho esse o tema do álbum. 'Não Deixei de Ser Quem Sou', 'Milagres', o próprio 'Terra Mãe', que vai ao encontro das minhas raízes, e criei esta letra a pensar na aldeia dos meus pais e na minha infância. Também um estado espiritual que sinto que este álbum tem.
O 'Réquiem' é o reflexo disso mesmo, foi uma frase em latim que inventei, que diz 'implet animum lumine solis' (sol ilumina a minha alma). A 'Terra Mãe' é uma limpeza de más vibrações e de trazer-nos a energia necessária para podermos viver bem, ou bem connosco.
'Entre Ser e o Estar' é também mais uma adaptação da Amélia Muge, que acaba por ser uma reflexão sobre o eu. E a esperança, o que é que andamos aqui a fazer… Por exemplo, 'Milagres' é uma música que nos diz que não há milagres, nós é que temos que fazer para que eles aconteçam. No fundo, é esta a mensagem deste álbum.
No fundo, 'Terra Mãe' também vai buscar as origens, que era o que queriam juntar…
Exatamente! As origens tanto da parte da Irlanda como da parte portuguesa. Não só apenas do fado, mas todas as raízes. Sou de Trás-os-Montes e tenho isso muito vincado em mim - o que são as raízes e o que é ser de uma terra, o que se vive nesses meios rurais, toda a naturalidade com que se vive, e também, até, a pobreza. Acabam por ser zonas muito virgens. E essa 'virgindade' territorial, que se aplica aqui a esta 'Terra Mãe' e ao estilo antigo da música irlandesa - que é virgem, completamente sem instrumentação, só apenas voz e sentimento, a melancolia. A própria palavra saudade, também tem essa vertente na música no estilo antigo irlandês… Não é um disco de fado, longe disso, são influências.
Não há nenhuma música pura. O próprio fado tem influências. Também não gosto de etiquetar e colocar nas prateleiras as músicas. Tivemos bastante dificuldade em perceber que género musical é que íamos dar a este disco
Há vários artistas, incluindo fadistas, que têm vindo a fazer trabalhos com a influência do fado, mas explorando outros 'mundos' em conjunto. Como acompanha a evolução do fado em Portugal?
Sinto que fui bastante responsável por esta nova instrumentação, principalmente a instrumentação no fado, e a música eletrónica. Em 2020, lancei um disco com o Raül Refree, que eram os fados tradicionais da Amália sem guitarra portuguesa, e depois comecei a ver colegas meus a usarem exatamente os mesmos instrumentos, posteriormente, no fado.
Sinto-me feliz, porque sinto que tive um papel neste processo todo de evolução do fado. Deve-se manter sempre a tradição, como ele é - guitarra, viola e voz. Mas a evolução é importante. Acabamos por não esquecer as raízes. Temos de primeiro ir ver como é para podermos transformar.
Ainda bem que há puristas, que há pessoas a reinventar, a criar e a receber novas influências. Isso é muito importante. E acho que não há nenhuma música pura. O próprio fado tem influências. Como também não gosto de etiquetar e colocar nas prateleiras as músicas. Tivemos bastante dificuldade em perceber que género musical é que íamos dar a este disco.
E hoje em dia há muito a mistura dos estilos musicais…
Quando lançamos um disco, temos de lhe dar o género musical. Para mim, tem sido um pouco difícil devido a esta partilha de influências e de novas sonoridades, novas texturas na música que tenho estado a fazer.
Não sinto que seja uma artista pop, não sinto que seja uma artista para massas. Por isso, torna-se difícil porque as grandes editoras são editoras de artistas que são mais pop, mais populares
Falando de Portugal, como é que acompanha a caminhada na música. Tem sido mais fácil a divulgação do trabalho com chegada das plataformas ou isso veio trazer um desafio diferente?
É bastante importante termos esta facilidade em podermos lançar músicas, e até fazer música em casa. Antigamente, para fazer música tínhamos que ir para um estúdio e era complicado. Hoje em dia não, já temos todos os meios para poder fazer música. A própria Billie Eilish faz um disco inteiro em casa.
É muito importante termos estes meios de divulgação, mas também é importante não haver só determinadas editoras. Ou seja, eu, por exemplo, não tenho uma editora em Portugal, tive que ir procurar uma editora lá fora.
Não tem cá uma editora não por opção, mas porque não conseguia arranjar essa parceria?
É complicado. Não sinto que seja uma artista pop, não sinto que seja uma artista para massas. Por isso, torna-se difícil porque as grandes editoras são editoras de artistas que são mais pop, mais populares…
Nós consumimos a música que nos dão. Não tenho nada contra a música pop, mas sou um bocadinho mais da onda do Ryuichi Sakamoto, Paul Buchanan, Glen Hansard
Sente essa pressão de a música encaminhar-se mais para um estilo pop, um género mais 'comercial'?
Acabamos sempre por ouvir os mesmos estilos, os mesmos ritmos, e há tanta música boa que não conhecemos. Nós consumimos a música que nos dão. Se nos derem outros estilos, outra cultura musical, percebemos que há música muito melhor do que aquela que é consumível neste momento, que é muito pop [comercial].
Não tenho nada contra a música pop, mas sou um bocadinho mais da onda do Ryuichi Sakamoto, Paul Buchanan, Glen Hansard… Tenho outro gosto musical e aprendi muito com o Raül Refree. Abriu-me novas formas de sentir a música e perceber que a música que nos dão a ouvir nas rádios nem sempre é a melhor. Portanto, é bom podermos ter acesso a estas plataformas onde as pessoas colocam as músicas que fazem, e irmos, de vez em quando, procurar outros estilos musicais com os quais nos reconhecemos mais. Isso é muito importante.
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