Portugal e medicamentos contra o cancro

Os números falam mais alto do que as declarações políticas e obrigam-nos a abandonar as lentes cor-de-rosa do patriotismo. Um trabalho científico, publicado recentemente com o título “Disparities in Clinical Benefit and Coverage of Drugs for Genitourinary Cancers: Cross-National Analysis in the USA, Canada, France, United Kingdom, Spain, Italy and Portugal” da autoria do Doutor José C. Tapia et al., revela uma realidade incómoda sobre o acesso a medicamentos contra o cancro em Portugal e Espanha.
Este estudo foi conduzido por uma equipa internacional de oncologistas e especialistas em políticas de saúde, liderada pelo Dr. José C. Tapia, médico oncologista com experiência clínica em vários países e especialista em cancros genitourinários. A investigação contou com a supervisão do Dr. Pablo Maroto, do Hospital Sant Pau, em Barcelona, uma das principais referências europeias no tratamento destes tipos de cancro.
A equipa incluiu especialistas locais de cada país analisado: a Dra. Diana Matthews (Reino Unido e Portugal), o Dr. Matthew Young (Canadá), o Dr. Luis Blondel (França) e a Dra. Georgia Anguera (Espanha), bem como outros oncologistas, nomeadamente os Drs. Ronan Flippot e Ricky Frazer, que garantiram a validação clínica dos dados. Esta composição internacional assegurou que cada sistema nacional de saúde fosse analisado por investigadores que conhecem intimamente as suas particularidades e processos.
A metodologia interdisciplinar combinou a experiência clínica direta no tratamento de doentes oncológicos com o conhecimento especializado dos sistemas regulamentares de cada país, garantindo o rigor científico e a relevância prática dos resultados apresentados.
Considerando o período entre 2005 e 2024, os investigadores analisaram o acesso a 55 medicamentos utilizados no tratamento de três tipos de cancro urológico (da próstata, do rim e da bexiga), em sete países desenvolvidos, incluindo Portugal. Os resultados apresentados neste trabalho refletem as disparidades europeias que não podemos continuar a ignorar.
Os dados estatísticos incómodosA taxa de cobertura é simplesmente a percentagem de medicamentos disponíveis num país em relação ao total de medicamentos existentes para um determinado cancro. Imaginemos que existem 20 medicamentos diferentes para tratar o cancro da próstata em todo o mundo. Nesse caso, Portugal tem uma taxa de cobertura de 65% neste estudo. Logo, apenas 13 desses 20 medicamentos estão disponíveis em Portugal.
De facto, Portugal tem taxas de cobertura muito baixas para o tratamento do cancro: 65% para o cancro da próstata, 50% para o cancro renal e 20% para o cancro da bexiga. Espanha, o nosso vizinho, também apresenta taxas muito baixas, sobretudo após 2016.
Na Europa, Portugal, Itália e a Escócia têm as taxas mais baixas de medicamentos para o cancro da bexiga, com uma taxa de cobertura de 20%. Ou seja, há apenas 3 medicamentos em 15 disponíveis nestes países.
Esta taxa de cobertura é importante. Se houver mais opções de medicamentos, então, se o primeiro medicamento não funcionar para um doente em particular, haverá mais alternativas. Estas múltiplas opções de medicamentos podem fazer a diferença entre ter um tratamento alternativo eficaz e disponível e não ter qualquer opção.
Para contextualizar esta realidade, refira-se que, até 2015, países como a França e a Itália conseguiram uma cobertura de 100% para estes medicamentos, ao passo que Portugal manteve-se consistentemente no fim da tabela. Mais perturbador ainda é verificar que as diferenças persistem mesmo quando se analisam apenas os medicamentos cuja eficácia está comprovada, ou seja, aqueles que a comunidade científica internacional e os organismos europeus responsáveis pela avaliação de medicamentos classificam como tendo um benefício clínico comprovado.
A Ironia do TempoNo entanto, há algo de absurdo nesta situação: os medicamentos demoram, em média, entre 33 e 47 meses a ficar disponíveis no mercado português, mesmo após terem sido aprovados cientificamente a nível internacional. Estamos a falar de uma diferença que pode ser, literalmente, a linha que separa a vida da morte para alguns portugueses com doença oncológica.
A morosidade administrativa não é um problema técnico, mas uma opção de gestão. Outros países europeus com sistemas de saúde semelhantes conseguem aprovar e disponibilizar os novos medicamentos mais rapidamente.
A França, por exemplo, tem uma das melhores taxas de cobertura na Europa: 85% para o cancro da próstata e 75% para o cancro renal. Em contraste, Portugal tem taxas de cobertura dramaticamente inferiores e tempos de aprovação 10 vezes superiores.
O Paradoxo da Qualidade CientíficaUma das descobertas mais perturbadoras deste estudo é que a qualidade da evidência científica que sustenta a presença destes medicamentos no mercado tem vindo a degradar-se. Se, antes de 2016, cerca de 64% dos ensaios clínicos eram conduzidos com uma metodologia rigorosa, após essa data, esta percentagem desceu para 29%.
Simultaneamente, a avaliação da qualidade de vida dos doentes durante o tratamento com um determinado medicamento, que já era negligenciada em 21% no período de 2005 a 2015, praticamente desapareceu, caindo para 5% após 2016 (período de 2016 a 2024).
De facto, o ano de 2016 marcou uma mudança em que os estudos científicos baixaram os padrões de qualidade, aumentou a pressão para aprovar medicamentos mais rapidamente e passou a haver menos preocupação com a forma como os doentes se sentem durante o tratamento. Em suma, o foco dos estudos de eficácia destes medicamentos passou a incidir sobre certos parâmetros (como o tamanho do tumor) e deixou de incidir sobre as pessoas, ou seja, deixou de se procurar saber se o doente se sente melhor durante o tratamento.
Isto significa que não só temos menos acesso aos tratamentos, como os próprios tratamentos aprovados têm, cada vez mais, uma base científica questionável. Trata-se de um cenário duplamente preocupante: não só recebemos menos, como o que recebemos pode não funcionar tão bem quanto esperamos.
Os medicamentos são testados em várias fases antes de serem colocados no mercado. A fase 2 tem como objetivo testar a eficácia do medicamento, sendo este experimentado em poucos doentes (cerca de 100), sem um grupo de controlo, e os resultados obtidos são considerados preliminares. O grupo de controlo é constituído por doentes que não recebem o medicamento novo que está a ser testado. Em vez disso, recebem um placebo, que é um comprimido sem efeito, semelhante a uma pastilha de açúcar. Sem um grupo de controlo, não há como saber se o medicamento é realmente eficaz. Na Fase 3, o objetivo é confirmar a eficácia do medicamento e compará-lo com os tratamentos existentes. São realizados testes com cerca de 1500 doentes, aos quais é administrado o medicamento em questão. Há sempre uma comparação com o grupo de controlo e os resultados são considerados definitivos.
Este estudo revela que 40% dos medicamentos para o cancro da bexiga ficaram na Fase 2, ou seja, baseiam-se apenas em resultados preliminares. O que pode explicar a baixa cobertura destes medicamentos em Portugal.
A situação espanhola é particularmente instrutiva. No período de 2005-2015, a taxa de cobertura em Espanha era de 93% dos medicamentos, tendo passado para 41% no período entre 2016-2024. Isto mostra que Espanha perdeu mais de 50% da sua cobertura de fármacos após 2016. Esta trajetória descendente deveria servir-nos de aviso, pois sem vigilância constante e sem a devida pressão política, até os sistemas que funcionam relativamente bem podem deteriorar-se rapidamente.
O Custo da Mediocridade
Não se trata apenas de estatísticas abstratas. Cada ponto percentual de diferença representa centenas de portugueses e espanhóis que não têm acesso aos tratamentos mais modernos, que lhes poderiam prolongar a vida ou melhorar a sua qualidade de vida. Quando Portugal tem uma cobertura inferior de 20 a 45 pontos percentuais face aos países com melhores resultados, estamos a falar de seis a sete medicamentos potencialmente salvadores de vidas que não estão disponíveis para os nossos doentes.
O estudo revela também que os medicamentos contra o cancro custam cerca de 30 mil euros por ano de vida com qualidade, um montante que está dentro dos padrões internacionais de custos e eficácia. A questão não é, portanto, se podemos pagar, mas sim se queremos organizar-nos para o fazer de forma eficiente.
Portugal disponibiliza apenas 20% dos medicamentos existentes para o cancro da bexiga e há um problema ainda mais grave: muitos dos poucos medicamentos acessíveis podem nem sequer ser eficazes. Apesar de se tratar de uma doença que provoca uma morte rápida, menos de metade dos estudos científicos testou se os medicamentos prolongam efetivamente a vida dos doentes. Em vez disso, foram avaliados aspetos secundários, como a diminuição do tumor ou a progressão mais lenta da doença. É como aprovar um medicamento para enfarte cardíaco com base apenas nos melhores resultados obtidos nas análises clínicas, sem verificar se evita a morte. No caso de uma doença fatal, a questão crucial deveria ser simples: “Este medicamento salva vidas?” A realidade é preocupante, dado que 40% dos medicamentos para o cancro da bexiga baseiam-se apenas em estudos preliminares (fase 2), que são menos rigorosos do que os estudos definitivos (fase 3). Alguns medicamentos foram aprovados na Europa sem que tivesse sido comprovado o seu benefício em termos de sobrevivência.
Como resultado, Portugal não só restringe drasticamente o acesso aos tratamentos, como os poucos disponíveis podem criar falsas esperanças em doentes e famílias em momentos de grande desespero.
Assim, a ausência de avaliação da qualidade de vida e a reduzida proporção de aprovações que cumprem critérios de benefício clínico substancial geram incerteza na comunidade oncológica. Em suma, os estudos não avaliam se os doentes se sentem melhor durante o tratamento e poucos medicamentos aprovados têm um benefício real comprovado. Por conseguinte, em muitos casos, os médicos oncologistas ficam confusos e inseguros, não sabendo quais os medicamentos que realmente valem a pena. Isto é grave, pois os médicos precisam de saber se o medicamento é realmente eficaz, se proporciona um benefício real e se o doente sofrerá muito com o tratamento, ou seja, que qualidade de vida terá. Sem esta informação, os médicos ficam sem orientação clara, inseguros nas suas decisões e divididos quanto ao tratamento a escolher.
O mais inquietante nesta análise é a constatação de que o problema não reside na falta de recursos financeiros, mas sim na falta de eficiência organizativa. Esta situação evidencia falhas estruturais nos nossos processos de avaliação e aprovação de medicamentos oncológicos. Temos burocracias lentas quando são necessárias decisões rápidas, processos duplicados quando é necessária eficiência e critérios opacos quando é necessária transparência.
O Caminho em FrenteO estudo não se limita a identificar problemas, mas também sugere soluções concretas. A harmonização dos processos de avaliação europeus, a integração de evidências do mundo real, a priorização da qualidade de vida dos doentes e a diminuição dos atrasos burocráticos são objetivos perfeitamente alcançáveis.
Em suma, os esforços devem centrar-se na redução dos atrasos nos reembolsos, na atribuição de maior ênfase aos resultados em termos de qualidade de vida e na harmonização regulamentar entre os vários países europeus, de modo a facilitar o acesso atempado a medicamentos a um custo justo, bem como numa avaliação mais abrangente dos impactos no mundo real.
Outros países europeus demonstram que é possível ter sistemas públicos eficientes. A questão é se Portugal e Espanha têm a vontade política necessária para implementar as reformas.
Uma responsabilidade coletivaOs sistemas de saúde português e espanhol continuam a revelar falhas que não podem ser ignoradas. Existe uma obrigação moral e política de exigir mais dos serviços de saúde. Não é admissível que, em pleno espaço europeu, a geografia determine o acesso a tratamentos que salvam vidas.
Este estudo demonstra, com dados concretos de 19 anos, que Portugal tem sistematicamente uma cobertura inferior à dos melhores países europeus. Não se trata de uma opinião, mas sim de evidência científica rigorosa.
Os dados estão disponíveis, as soluções são conhecidas e existem modelos de sucesso. Agora, trata-se apenas de uma questão de vontade política e de pressão social para que Portugal e Espanha deixem de ser exemplos de desempenho medíocre e se tornem referências de excelência na Europa.
Afinal de contas, quando falamos de estatísticas de acesso a medicamentos contra o cancro, estamos a falar de pessoas concretas, de famílias reais, de vizinhos e amigos que merecem o melhor que a ciência médica pode oferecer.
E isso deveria ser um direito, não um privilégio, independentemente da nossa nacionalidade ou código postal.
observador