Uma questão de fé

Começou como missão humanitária, por oposição às acusações de propaganda. Acabou como acção de propaganda, por oposição às acusações de que a coisa servia apenas para sinalizar virtudes e condicionar o debate público europeu, e não vinha daí nenhum mal ao mundo, já que quem contesta a propaganda é conivente com o “genocídio”, é desprovido de “humanidade”, é, enfim, um selvagem. Partiram, não em silêncio, como os monges, mas como propagandistas da virtude. Um grupo de virtuosos — ateus por dentro, mas pequenos deuses por fora — embarcou rumo à mais recente romaria laica da extrema-esquerda europeia. A bordo iam as ideias de sempre, os dogmas de sempre, os ícones reciclados, os jornalistas amigos e a absoluta convicção de que alcançariam tudo o que fosse necessário para mostrar ao mundo que o Ocidente, sempre ele, da América a Israel, é o diabo encarnado.
O pequeno exército de acólitos da indignação selectiva decidiu fazer-se ao mar como quem parte em campanha eleitoral a bordo do sofrimento alheio. Não abundavam os mantimentos, nem soluções que não passassem pelo fim de Israel, mas sobejava o capital simbólico de pertencer à Igreja do Humanismo Superior da Esquerda, aqui e ali financiada por terroristas, ali e acolá abençoada por sectarismos de décadas.
Não foi um gesto isolado, mas um ritual de confirmação, este dos novos sacerdotes da esquerda radical europeia, sempre desejosos de serem vistos no campo do sofrimento que lhes interessa. Afinal, onde estava a solidariedade para com o desgraçado povo palestiniano quando este era vítima de massacres e objecto de escudo militar às mãos do Hamas?
Do alto das catedrais laicas da Europa, os bispos da causa assistem embevecidos à cerimónia levada a cabo pelos seus missionários políticos. É uma homilia escrita há décadas, entre panfletos libertários, simpatias revolucionárias e silêncios sobre cadáveres incómodos. A ETA? É complexo. As FP-25? Carece de contexto. A URSS? É comunismo mal interpretado. O terceiro-mundismo? Erros de percurso. Os mortos do socialismo real? Um azar. Os milhões de vidas desfeitas por aquilo em que acreditaram? Um detalhe.
E agora, com uma vida inteira de cumplicidades intelectuais e jornalísticas com regimes e causas que fizeram da violência um método legítimo, vêm oferecer-se como fiscais do nosso moralismo e inquisidores da bondade dos outros. Apontam o dedo, com a cátedra que lhes dá o cinismo, a tudo o que não cabe no evangelho anti-ocidental.
O problema não é que tenham ido. O problema é que nunca voltam com dúvidas. A Brigada Moral da Esquerda só tem certezas a respeito de tudo e de todos. Estão sempre certos de estarem do lado certo da História, como sempre estiveram – mesmo com um rasto de sangue atrás de si. A esquerda radical é como o seu contrário – quer-se absoluta, e precisa de uma liturgia. Não tem Deus, nem precisa, porque é ela que distribui culpas e absolvições. Para ela não há nuances, não há cinzentos, não há sequer factos para lá do único facto (e se for mesmo um facto já é uma sorte!) que lhe importa. Prega um humanismo sem humanidade – selectivo, estratégico, panfletário. Comovem-se com tudo, excepto com as vítimas da sua própria História.
Esta aliança entre a esquerda radical europeia e o islamismo radical não é nova, mas tem agora o seu momento-chave de 2025. É um movimento paradoxal, é certo, mas que nasce todo de uma afinidade e de muita conveniência. A esquerda órfã da classe operária procura no islão radical o novo sujeito revolucionário da disciplina e do ressentimento do anti-capitalismo, anti-ocidental e anti-liberdade. O objetivo partilhado é minar o que resta da cultura ocidental. A flotilha é apenas o último sacramento. Uma espécie de canto do cisne, belíssimo nos ecrãs onde desfila o clero raivoso anti-burguês, mas prestes a morrer eleitoralmente. A reacção que provocam não será, infelizmente, menos dura do que toda esta estupidez sectária. Mas como tudo isto foi procurado, presumo que também ninguém esteja cá para se queixar depois.
observador